O marxismo cultural
Tudo começou em 2014, quando comecei a acompanhar o mais
novo (não tão novo) guru do nosso presidente, Olavo de Carvalho, e suas
deduções a respeito de ciência, que é a minha área. Lembro que vi um vídeo dele
refutando Isaac Newton e, por ser professora de física e saber que refutar uma
teoria científica não é uma coisa tão simples, fui ler os textos onde ele apresentava
os “fundamentos” para as tais “refutações”.
A conclusão foi óbvia: apesar de sua boa retórica, as ditas
refutações baseavam-se em suposições deturpadas do que é ciência e teoria
científica. E esse não foi o único texto que li! Havia textos onde falava de Einstein, Galileu
e outros assuntos. Todos os seus textos (científicos ou não) continham erros
crassos de compreensão e interpretação dos conceitos básicos, mas uma coisa me
chamou a atenção, a quantidade de seguidores e de pessoas que acreditavam
naquelas sandices mal interpretadas por ele. Nem vou falar do palavreado que
utiliza nos vídeos, pois os textos são completamente diferentes. Como eu disse,
ele tem uma boa retórica que consegue convencer o leitor leigo.
Alguns youtubers, que fazem divulgação científica na
internet, chegaram a criar conteúdo de qualidade falando sobre esses erros, mas
não atingiram seus seguidores, pelo menos não que eu saiba, e o “olavismo”
começa a tomar conta das redes sociais. O fenômeno da desinformação e da
ignorância, não só científica, alcançou um patamar jamais visto.
O pior, no entanto, estava para acontecer: o Governo Federal atual, mais precisamente o Ministério
da Educação, através de seus ministros (o anterior e o atual) defendem a ideia
de que as universidades públicas estão permeadas de comunistas e que estamos
diante do dito “marxismo cultural” que vinha distorcendo as ideias de nossos
jovens e crianças e toda nossa sociedade.
Mas de onde surgiu isso?
Como disse Jessé de Souza em seu livro A Elite do Atraso:
“No mundo moderno, quem cria legitimação do poder social que será a chave de
acesso a todos os privilégios são os intelectuais”. E Olavo não ignora isso,
mas como o próprio Jessé frisa “o presente não se cria sem o passado.”
Numa entrevista de Olavo de Carvalho concedida ao Pedro Bial
em março desse ano, as coisas foram se tornando mais claras. Segundo ele, há
uma hegemonia às ideias de esquerda dentro das universidades, que é feita
através de um procedimento único, a orientação de teses, e que “Quando você
aprova (tese) assegura que a próxima geração de professores será igualzinho a
você”. “Pega os últimos 30 ou 40 anos e pergunta: Quantas teses anticomunistas
foram aprovadas? A resposta é, nenhuma”.
Essa é a primeira inverdade (mentira mesmo!). Nos bancos de teses
(eu verifiquei) existem teses que são “anticomunistas” e são muitos os autores
citados, de diversas correntes do pensamento, porque, quando uma pesquisa é
feita para o desenvolvimento de uma tese, nem sempre os autores citados são os
que concordam com o tema que está sendo pesquisado. Aliás, existe algo que se
chama “ Revisão por pares” (peer review) de artigos científicos, que “é
a avaliação de resultados de pesquisa ou propostas de projetos quanto à
competência, significância e originalidade, conduzida por especialistas
qualificados que pesquisam e submetem para publicação trabalhos na mesma área
(pares)”. (Scielo, 2009). Então, mesma área ou pares não quer dizer que só seus
“amiguinhos” irão aprovar ou não sua tese!
Como Jessé de Souza diz no livro citado acima: “Quem atribui
prestígio hoje em dia a uma ideia é o prestígio científico, assim como antes
era o prestígio religioso ou supostamente divino, toda informação midiática, no
jornal ou na TV, procura se legitimar com algum especialista na matéria que
esteja sendo discutida. Nessa estratégia de dominação, que é mais simbólica do
que material, é a posse do que é tido como verdadeiro que permite também se
apoderar do que é percebido como justo ou injusto, honesto e desonesto, correto
ou incorreto, bem ou mal e assim por diante. Controla-se a partir do prestígio
científico, portanto, tudo o que importa na vida.”
Bom, mas de onde vem a ideia de educação marxista?
Exatamente dessas teses aprovadas. Ou seja, Olavo tem razão! Calma! Razão
dentro de sua mente deturpada.
A história da educação nos remete a sete tendências
divididas em duas partes: as liberais e as progressistas. Para o texto não ficar
muito extenso, vou falar apenas das últimas, as progressivas, que vêm a partir
de Paulo Freire, constantemente atacado por Olavo e seus seguidores. Freire
começa a ser levado em consideração a partir da Escola Nova, que faz parte da
tendência liberal, antes da ditadura, e foi suprimida por ela, mas para não me
alongar mais ainda os detalhes dessa história, abaixo consta um vídeo sobre o Ginásio Vocacional (baseando-se
na Escola Novista) que é interessante conhecer.
As tendências libertadoras, libertária e atualmente, Crítica
Social dos Conteúdos ou Histórico-Crítica, que surgiram pós ditadura, têm em
seu cerne as teorias freirianas (Paulo Freire), considerado marxista, (apesar
de ter visto somente uma referência a Marx no rodapé de apenas um de seus
livros). Os críticos dessas tendências, inclusive e principalmente Olavo,
esqueceram de levar em consideração fatores determinantes de uma sociedade e de
sua cultura.
O primeiro ponto a ser levado em consideração é sobre o
conceito de cultura. Edward B. Tayor, o antropólogo britânico, pai do conceito
moderno de cultura, define-a como “todo aquele complexo que inclui o
conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros
hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Segundo
essa definição, cultura é tudo aquilo que permeia o meio social e a escola é apenas
uma ínfima parte dentro desse todo. Mesmo que todos os professores fossem
marxistas, o que não é, todo o corpo discente de uma escola não seria, pois
além dela (escola) existem outros fatores que são muito mais definidores de
suas culturas (igreja, meio social etc.).
O erro de Olavo e seus seguidores é não levarem em
consideração toda a história da nossa educação, inclusive a sua desvalorização
política e social feita por aqueles que estão no poder desde a expulsão dos
jesuítas, e todo contexto social e político. Simplesmente fazem uma análise
superficial e partem do princípio de que, para barrarem essa “doutrinação
marxista”, devem destruir as universidades públicas e toda as “ideias
esquerdistas” que estão em seu interior.
O desmonte das universidades e escolas públicas está sendo
feito a partir (também) de uma teoria conspiratória unindo à vontade política
de dominar os poderes políticos e econômicos. O resultado é que temos um avanço
significativo desse desmonte feito por esse governo, que tem no seu plano a
extirpação dessa dita doutrinação alimentado por um cérebro deturpado.
Onde vamos parar eu não sei, mas se faz mais que urgente uma
estratégia de difundir as ideias acadêmicas para a sociedade, pois, a meu ver,
a mídia não está muito interessada na ciência propriamente dita, mas naquilo que
proporciona status e dinheiro. Principalmente levar esse conhecimento aos mais
jovens das escolas públicas, através de vídeos, textos, livros, depoimentos
etc., mostrando ao Ministro da Educação que ela, a pesquisa científica, não é
balbúrdia, como ele mesmo disse. Sei que isso já é feito, mas precisamos, neste
momento, de um esforço muito maior e mais amplo.
Referências:
A ELITE DO ATRASO
está disponível gratuitamente no site https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4421437/mod_resource/content/1/Jesse%CC%81%20Souza%20-%20A%20Elite%20do%20Atraso%20%281%29.pdf
FREIRE, Paulo. Pedagogia Da Autonomia. Saberes Necessários à
Prática Educativa, 1996. Paz e Terra, Goiânia, Brasil, 2002.
GASPARIN, João Luiz. Uma Didática para a Pedagogia
Histórico-Crítica. 2ª ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2003.
MONLEVADE, João Antônio C. Constituição Federal da República
Federativa do Brasil. Seção que Pactua a
Educação como Direito de Todos. https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/outras-publicacoes/volume-v-constituicao-de-1988-o-brasil-20-anos-depois.-os-cidadaos-na-carta-cidada/educacao-e-cultura-a-valorizacao-dos-educadores-na-constituicao-de-1988-antecedentes-e-consequentes,
acessado em 21/06/2019.
MONLEVADE, João Antônio C. Plano Municipal de Educação, https://deolhonosconselhos.files.wordpress.com/2013/08/plano-municipal-de-educac3a7c3a3o-por-joc3a3o-antc3b4nio-cabral-de-monlevade.pdf,
acessado em 15/06/2019
MONLVADE, João Antonio C. A Valorização dos Educadores na
Constituição de 1988: Antecedentes e Consequentes, 2019. Volume V, A
Constituição de 1988. O Brasil 20 anosdepois.https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/outras-publicacoes/volume-v-constituicao-de-1988-o-brasil-20-anos-depois.-os-cidadaos-na-carta-cidada/educacao-e-cultura-a-valorizacao-dos-educadores-na-constituicao-de-1988-antecedentes-e-consequentes,
acessado em 20/06/2019.
RIBEIRO, Paulo R. M.
História da Educação Escolar no Brasil: Notas para uma Reflexão, 1993.http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-863X1993000100003,
acessado em 19/06/2019.
Calô-Nassi, Liliam. Avaliação
por pares: ruim com ela, pior sem ela. https://blog.scielo.org/blog/2015/04/17/avaliacao-por-pares-ruim-com-ela-pior-sem-ela/#.XRpn3ehKjcc, acessado em 01/07/2019.
Boa noite.Pessoas de bom senso ou com um minimo de conhecimento, jamais irão concordar com essas abominacoes, ma sabemos que o ódio e as arbitrariedades predominam.
ResponderExcluirEntão vc não viu a entrevista dele, não é? Assista e analise. Pessoas de bom senso possuem senso crítico. Obrigada pelo seu comentário.
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