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quarta-feira, 10 de abril de 2019

VIGIAR E PUNIR - texto de Michel Foucault



Via Isaias Edison Sidney: Para professores, o texto de Michel Foucault, do livro VIGIAR E PUNIR (a tradução é portuguesa). Contextualizo: Foucault está falando do treinamento militar (principalmente do famoso exército prussiano) e da rigorosa disciplina dos conventos, para mostrar como essas metodologias foram aplicadas a várias atividades e às escolas, defendidas por filósofos dos séculos XVII e XVIII. Eis o texto:

"[...]a escola-edifício deve ser um operador de adestramento. Pâris-Duverney concebeu uma máquina pedagógica na Escola Militar até nos pormenores ínfimos que impôs ao arquiteto Gabriel. Adestrar corpos vigorosos, imperativo de saúde; obter oficiais competentes, imperativo de qualificação; formar militares obedientes, imperativo político; prevenir a devassidão e a homossexualidade, imperativo de moralidade. Razão quádrupla para estabelecer separações estanques entre os indivíduos, mas também aberturas de vigilância contínua. O próprio edifício da Escola devia ser um aparelho de vigiar; os quartos estavam distribuídos ao longo de um corredor como uma série de pequenas celas; em intervalos regulares, havia um alojamento de oficial, de maneira a que «cada dezena de alunos tenha um oficial à direita e à esquerda»; os alunos ficam aí fechados durante toda a noite; e Pâris insistira para que fosse instalada uma janela «na parede de cada quarto do lado do corredor, desde a altura de apoio até a um ou dois pés do teto. Além do facto de a vista destas vitrinas ser agradável, ousamos dizer que é útil em muitos aspetos, já para não falar das razões de disciplina que podem determinar esta disposição»(3). Nas cantinas, ergueu-se «um estrado relativamente elevado para as mesas dos inspetores dos estudos, para que possam ver todas as mesas dos alunos das suas divisões durante as refeições»; instalaram-se latrinas com meias-portas, de modo a que o vigia responsável por essas instalações pudesse ver a cabeça e as pernas dos alunos, mas com separações laterais suficientemente elevadas «para que os alunos não se possam ver uns aos outros»(4). Escrúpulos infinitos da vigilância que a arquitetura repete em inúmeros dispositivos indecorosos. Só os consideraremos irrisórios se esquecermos o papel desta instrumentalização menor, mas sem falhas, na objetivação progressiva e na repartição cada vez mais subtil dos comportamentos individuais. As instituições disciplinares segregaram um maquinismo de controlo que funcionou como um microscópio do comportamento; as divisões ténues e analíticas por elas realizadas formaram, em redor dos homens, um aparelho de observação, de registo e de adestramento. Nestas máquinas de observar, como subdividir os olhares, como estabelecer relações e comunicações entre eles? Como fazer com que, da sua multiplicidade calculada, resulte um poder homogêneo e contínuo?

O aparelho disciplinar perfeito permitiria que um único olhar visse tudo constantemente. Um ponto central seria fonte de luz que iluminaria tudo e, ao mesmo tempo, o lugar de convergência para tudo o que deve ser conhecido: olho perfeito a que nada escapa e centro para o qual todos os olhares estão virados. Foi o que imaginara Ledoux quando construiu Arc-et-Senans: no centro dos edifícios dispostos em círculo, todos virados para o interior, uma construção alta devia acumular as funções administrativas de direção, policiais de vigilância, econômicas de controlo e de verificação, religiosas de encorajamento à obediência e ao trabalho; daí decorreriam todas as ordens, aí seriam registadas todas as atividades, observadas e julgadas todas as faltas; e isto imediatamente, quase sem outro suporte que não uma geometria exata. Entre todas as razões do prestígio que foi atribuído, na segunda metade do século xviii, às arquiteturas circulares(5), deve-se contar certamente esta: exprimiam uma certa utopia política.


No entanto, o olhar disciplinado precisava efetivamente de substitutos. Melhor que um círculo, a pirâmide podia responder a duas exigências: ser suficientemente completa para formar uma rede sem lacunas – possibilidade, portanto, de multiplicar os seus níveis e de os distribuir por toda a superfície a controlar; e ser suficientemente discreta para não pesar como uma massa inerte sobre a atividade a disciplinar e não ser para esta um freio ou um obstáculo; integrar-se no dispositivo disciplinar como uma função que lhe aumenta os efeitos possíveis. Teve de decompor as suas instâncias, mas para aumentar a sua função produtora. Especificar a vigilância e torná-la funcional.


É o problema das grandes oficinas e das fábricas, onde se organiza um novo tipo de vigilância. É diferente daquele que, nos regimes das manufaturas, era assegurado do exterior pelos inspetores encarregados de fazerem aplicar os regulamentos; trata-se agora de um controlo intenso, contínuo; percorre todo o processo de trabalho; não incide – ou não só – sobre a produção (natureza, quantidade de matérias-primas, tipo de instrumentos utilizados, dimensões e qualidades dos produtos), mas leva em conta a atividade dos homens, os seus conhecimentos técnicos, a maneira como trabalham, a sua prontidão, o seu zelo e comportamento. Mas é também diferente do controlo doméstico do mestre, presente ao lado dos operários e dos chefes; pois é efetuado por chefes, vigilantes, controladores e contramestres. À medida que o aparelho de produção se torna mais importante e mais complexo, à medida que aumentam o número dos operários e a divisão do trabalho, as tarefas de controlo tornam-se mais necessárias e mais difíceis. Vigiar passa a ser uma função definida, mas que deve ser parte integrante do processo de produção; deve estender-se a todo o processo. Torna-se indispensável pessoal especializado, constantemente presente e distinto dos operários: «Na grande manufatura, tudo se faz ao toque da campainha, os operários são coagidos e reprimidos. Os chefes, acostumados a vê-los com um ar de superioridade e de comando, que é realmente necessário com a multidão, tratam-nos de forma dura e com desprezo; por isso, esses operários são mais caros ou ficam pouco tempo na manufatura»(6). No entanto, embora os operários prefiram o enquadramento de tipo corporativo ao novo regime de vigilância, reconhecem nele um elemento indissociável do sistema de produção industrial, da propriedade privada e do lucro. À escala de uma fábrica, de uma grande forja ou de uma mina, «os objetos de despesa são tantos que a infidelidade mais módica sobre cada objeto resultaria numa fraude imensa, que não só absorveria os benefícios, como também levaria a uma perda dos capitais; (…) a mínima imperícia desapercebida e, por isso, diariamente repetida pode tornar-se funesta para a empresa, a ponto de a destruir em muito pouco tempo»; daí o facto de só os agentes, diretamente dependentes do proprietário e afetos a essa tarefa, poderem zelar «para que nem um cêntimo seja gasto inutilmente, para que não se perca um único momento do dia»; o papel deles consistirá em «vigiar os operários, visitar todos os locais de trabalho, informar a direção sobre tudo o que se passa»(7). A vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é, simultaneamente, uma peça interna do aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar(8).


O mesmo movimento pode ser visto na reorganização do ensino básico: especificação da vigilância e integração na relação pedagógica. O desenvolvimento das escolas paroquiais, o aumento do número dos seus alunos, a inexistência de métodos que permitissem regulamentar simultaneamente a atividade de toda uma turma, a desordem e a confusão que se seguiam tornavam necessário o estabelecimento de controlos. Para ajudar o professor, Batencour escolheu, entre os melhores alunos, uma série de «oficiais», intendentes, observadores, monitores, tutores, recitadores de orações, oficiais de escrita, recebedores de tinta, esmoleres e visitadores. Os papéis assim definidos são de duas ordens: uns correspondem a tarefas materiais (distribuir a tinta e o papel, dar as sobras aos pobres, ler textos espirituais nos dias de festa, etc.); os outros são da ordem da vigilância; os «observadores» devem anotar «quem saiu do seu banco, quem fala, quem não tem terço ou livro de orações, quem se porta mal na cantina, quem comete alguma imodéstia, cavaqueia ou faz barulho na rua»; os «admonitores» encarregam-se «dos que falam ou que fazem barulho enquanto estudam as lições, dos que não escrevem ou que brincam»; os «visitadores» informam-se, junto das famílias, sobre os alunos que faltaram ou que cometeram faltas graves. Quanto aos «intendentes, vigiam todos os outros oficiais. Só os «tutores» têm um papel pedagógico: fazem os alunos ler dois a dois, em voz baixa(9). Algumas décadas depois, Demia estabelece uma hierarquia do mesmo tipo, mas as funções de vigilância são agora quase todas duplicadas por um papel pedagógico: um professor assistente ensina a segurar a pena, guia a mão, corrige os erros e, ao mesmo tempo, «marca as faltas quando discutem»; outro assistente tem as mesmas tarefas na sala de leitura; o intendente, que controla os outros oficiais e zela pelo comportamento geral, tem também a tarefa de «iniciar os recémchegados aos exercícios da escola»; os decuriões fazem recitar as lições e «marcam» os que as não sabem(10). Temos aqui o esboço de uma instituição de tipo «mútuo», onde estão integrados, no interior de um único dispositivo, três procedimentos: o ensino propriamente dito, a aquisição dos conhecimentos pelo próprio exercício da atividade pedagógica, e uma observação recíproca e hierarquizada. Uma relação de vigilância, definida e regulamentada, está inscrita na essência da prática do ensino: não como uma peça adicional ou adjacente, mas como um mecanismo que lhe é inerente e que multiplica a sua eficiência."


(Vigiar e Punir, Michel Foucault; tradução de Pedro Elói Duarte; Biblioteca Nacional de Portugal, nov. de 2013; Edições Almeida, S.A,, Lisboa, Portugal)

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